O que será que acontece para que o homem tenha tanta dificuldade de lidar com circunstâncias que o envolvem, entre sentimentos e cultura? Por que será que não se reconhece o coração em conflito, nem ao menos se esforça para conciliar as contradições advindas do medo, da raiva, do sofrimento, da vergonha, que circundam as incessantes buscas do bem-estar?
Percebemos, sim, um mundo de descobertas alucinadas e alucinantes que têm como intenção encobrir as dificuldades de existência, dando origem à alguns deslumbramentos e insensatezes diante das danças, das músicas, pinturas, literaturas e demais artes, como se este espaço de vazão fosse suficiente para um cem número (ou seria sem número?) de escapes que nos abrandam os sentimentos e alimentam nossas almas.
Mas, não! Continuamos com o coração em conflito, numa constante luta entre o bem e o mal, entre o gosto e não-gosto, entre o querer e o não querer, mantendo uma dualidade que nos oprime e escraviza, entediando nossos dias e causando-nos mal físico, psicológico e espiritual. Ser duo (corpo e mente; corpo e espírito) é um estado que dificulta a vida e traz consequências gigantescamente difíceis.
Apesar deste conceito de “duo” já tenha sido resolvido tempos atrás, insistimos em localizar prazer no corpo e prazeres na alma; ainda insistimos em relatar que nosso corpo quer isto e nosso espírito não o quer. Nós nos fracionamos, sem sombras de dúvidas, mas o sofrimento é dobrado, visto creditarmos valores a cada uma das frações. Afinal, como entender este homem tão capaz que não se percebe uno?
Damásio, em 2018, quando escreve “A estranha ordem das coisas”, alfineta-nos com análises que atingem cada uma destas duas direções: o corpo e a mente ou o corpo e o espírito; suas percepções nos levam a pensar em como o drama humano está longe de terminar, uma vez que sentimos e queremos viver duas partes, num só corpo e num só cérebro. Ele afirma, inclusive, que os sentimentos nunca foram valorizados e que o homem que sentem é visto como um homem inferior, de segunda categoria. E é neste sentido que as práticas culturais são pouco valorizadas e menos consideradas como sérias e necessárias.
E avançando nas análises deste pensador, aprendemos que, se não precisássemos lidar com a dor e o sofrimento, tão pouco com a alegria e bem-estar, não haveria motivação de usar nosso intelecto para criar e desenvolver qualquer forma de cultura humana, das artes até às tecnologias. Nossas criações são impulsionadas por tamanhas inquietações e ebulições internas, que nos impelem ao novo, ao desconhecido, apesar da nossa eterna resistência ao inovador.
A força poderosa que exercemos para a manutenção de nossa Vida, tal como ela é, permite-nos compreender o Mundo e nosso modesto lugar nele, da maneira que somos (e não como gostaríamos de ser)!!! Pensar nisso é um tremendo exercício de Lógica e de Filosofia da mais alta linhagem, uma elaboração para poucos, mas verdadeira, genuína e profunda.
A ideia é que a atividade cultural começa e permanece profundamente alicerçada em nossos sentimentos; precisamos reconhecer a interação favorável e desfavorável dos sentimentos com o raciocínio caso queiramos compreender os conflitos e as contradições da condição humana: este é o grande mistério e fator de motivação da nossa existência.
Por que o mundo do afeto é tão desconsiderado ou não valorizado, se a vida cotidiana é inconcebível sem ele? Talvez (sim, talvez…) porque os sentimentos sejam onipresentes, e exigem pouca atenção, desta forma, os momentos de poucas perturbações tendem a ser as mais numerosas em nossas vidas e não deixam pistas para que percebamos o afeto que envolve toda a existência; passa como se não houvesse uma manifestação afetiva, como se houvesse uma neutralidade ( o que é impossível de acontecer, uma vez que nada é neutro).
Os sentimentos podem merecer mais ou menos destaque em nossa mente: quando temos uma mente ocupada, ruidosa, tumultuada por várias análises, interpretações e tomadas de decisões, estaremos no exercício consciente (ou não) de prestar mais atenção a determinado fato, dependendo do quanto valorizamos este momento ou coisa, do quanto ele é relevante ou significativo. Fora disto, os pensamentos são improdutivos e… os sentimentos também. Que fique claro que pensamentos e sentimentos são regrados e avaliados da mesma forma, apesar de serem diferentes e distintos entre si.
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COMO É GOSTOSO SENTIR-SE SURPRESO
Como sabemos, nem tudo na vida merece atenção. Nosso cérebro, grande piloto de nossas Vidas, sabendo disso, imprime-nos um impulso que nos leva a perceber quem nem todos pensamentos, tão pouco nem todos sentimentos merecem atenção. Questões significativas e imprescindíveis serão sinalizadas e melhor percebidas, sempre.
Impressionante como ficamos à mercê de situações que nos desafiam. Com a mosca é atraída pela luz, somos atraídos pelos desafios: então, num processo catártico, mergulhamos para entender o contexto que nos desafia e sofremos para imprimir a “nossa” ordem à coisa. Somos um “bichinho” teimoso. Amoroso, sábio e teimoso. Uma complexa alquimia, essa da qual somos constituídos.(Foto: Miriam Espacio/Pexels)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO
É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.
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