Desde a segunda metade do século passado, consolidamos uma compreensão inequívoca: o gênero de uma pessoa é uma construção social. O marco é a célebre frase da filósofa Simone de Beauvoir, ao afirmar que ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Assim, é a cultura que exerce influência no modo singular como cada pessoa se identifica, e não a natureza. Isso vale para homem, mulher, pessoa não binária, gênero fluido ou mesmo agênero. Mas se gênero é uma categoria construída pela cultura, seria então o sexo biológico da ordem da natureza? A suposta “natureza” do sexo biológico não é tão evidente como a maioria das pessoas pensa. A categoria sexo biológico, ou seja, a ideia de que existe um corpo masculino e um corpo feminino, também é uma construção social. Aliás, bem recente na cultura ocidental. Eu explico melhor.
Em 2001 Thomas Laqueur, um historiador da ciência e sexólogo americano, escreveu o livro “Inventando o Sexo”. Lá, ele argumenta que somente no século XIX a medicina passou a considerar o dimorfismo sexual, ou seja, a distinção do sexo biológico em dois corpos diferentes: masculino e feminino. A noção dominante até o século XVIII estava baseada num modelo de “sexo único”, o masculino, que refletia o corpo ideal, e que o corpo feminino era uma variação incompleta e imperfeita deste.
Acreditava-se que no processo de gestação, se a mãe recebesse “calor vital” suficiente, a maturação do feto seria completa, externando os órgãos sexuais (pênis, escroto e testículos). Caso a gestação não recebesse calor vital suficiente, o resultado seria a presença de órgãos sexuais internalizados (vulva, útero e ovários).
Nessa perspectiva, o olhar científico definia a presença de órgãos sexuais masculinos e femininos idênticos, mas dispostos de maneira inversa. Ao considerar a morfologia masculina como sendo a completa e ideal, o corpo feminino era imperfeito, incompleto e, portanto, de menor valor em uma hierarquia de dominação. O próprio cristianismo reforçava essa ideia, com Eva sendo gerada a partir da costela de Adão.
Atualmente, a ciência médica problematiza a categoria sexo biológico como um fenômeno amplo e complexo. Trata-se de um termo guarda-chuva. Uma pessoa carrega em seu corpo vários sexos, e todos são biológicos. Temos o nosso sexo genital (pênis/vulva), sexo gonadal (testículos/ovários), sexo hormonal (testosterona/estrogênio), sexo cerebral (morfologia/configuração neurológica), sexo cromossômico (cariótipo XX/XY/XXY etc.) e sexo fenotípico (características sexuais secundárias). Enfim, é a convergência única de diversas características fisiológicas que, em conjunto, determinam o que seria o sexo biológico da pessoa.
Voltando à pergunta inicial, podemos afirmar que todo sexo biológico é natural, desde que se pense nas variações e possibilidades em uma noção ampliada e inclusiva de sexo biológico. Isso demanda incluir no debate toda a diversidade presente, por exemplo, nas pessoas intersexo.
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Estima-se que os corpos de 2% da população não seguem uma coerência binária esperada. Pode-se falar em um espectro, com mais de 50 variações identificadas. Alguém pode, por exemplo, ter nascido com pênis, ter desenvolvido ovários e possuir um cariótipo XX. Chamadas na ciência médica de DDS (Diferenças do Desenvolvimento do Sexo), são variações que ocorrem ainda no ambiente intrauterino e que são absolutamente compatíveis com a vida.
Por fim, um aprendizado: o que é “natural” mesmo, é a diversidade humana!(Foto: Cottonbro Studio/Pexels)
MARCELO LIMÃO
Sociólogo, psicólogo clínico, especialista em “Adolescência” (Unifesp) e “Saúde mental no trabalho” (IPq-USP). Colaborador no “Espaço Transcender – Programa de Atenção à Infância, Adolescência e Diversidade de Gênero”, da Faculdade de Medicina da USP. Instagram: @marcelo.limao/Whatsapp: (11) 99996-7042
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