O SORRISO DE Tyffany Janaína

o sorriso
Esta moça, toda emperiquitada aos moldes do século XVIII francês é, ninguém menos que Jeanne-Antoinette Poisson, também chamada de Marquesa de Pompadour, a mais famosa cortesã do Antigo Regime. A coroa que avistei da sacada é, no mínimo, dez vezes mais bela. Foto In: https://abre.ai/b0BO

O sorriso de Tyffany Janaína é um texto fragmentado e que tem como intuito sensibilizar a nossa visão sobre as péssimas condições de vida, preconceitos sofridos e violência diária que atingem as mulheres trans. As partes da narrativa também vão transitar por outros temas. Deixo para a sagacidade das pessoas que farão a leitura o privilégio, nem um pouco irônico, de discernir se essas linhas são fantasiosas, criativas ou reais.

PARTE I

Não que seja do interesse de muitas pessoas, mas eu moro no centro da cidade, não é um lugar extremamente decaído, todavia, sofre com o descaso dos malditos políticos de sempre, esses que infestam a rotina de qualquer cidadezinha a cada quatro anos, pedem votos, abraçam crianças, velhos e doentes, tomam café em alguma birosca e, enfim, evaporam.

Centro é centro: em horário comercial há muitas lojas, restaurantes, ônibus, bancos e pessoas apressadas; mas, nas horas de nascer e morrer do sol, figuras peculiares surgem como que gestadas pelas tintas dos prédios descascados.

Centro é centro se tiver mendigos, nóias, albergues, adolescentes em fúria, botecos, motoboys alucinados, cães e gatos vira-latas, lixo extravasando calçadas, ao menos uma rua famosa de prostituição e, claro, pensões. Meu quarteirão tem tudo isso e mais um pouco, com leves toques decadentes de filme noir e aquele típico marasmo interiorano – simplesmente um porre, mas porre de cerveja quente.

Do outro lado da rua há uma pensão; na pensão – cuja entrada tem sempre uma placa de alugam-se quartos – há ao menos vinte muquifos, presumo; e nessas caixas de sapatos ocorre todo tipo de pandemônio.

O interessante é que o cortiço é multiuso, vejo muita história entrando e saindo dali.

Sempre às sextas-feiras, quando carros duelam suas buzinas e o sol começa a dar trégua, uma voz espalha-se pela rua toda. No primeiro dia do ano não foi diferente:

– Ô Tyffany!

Geralmente não há resposta de primeira, a voz insiste, sempre

– ÔÔÔÔÔôô Tyffanyyy! Acorda, pô!

Já exaltados, os gritos mudam de rumo e gênero:

– Julianno, acorda, desgraçado!

Tyffany Janaínna é uma das muitas mulheres que diariamente precisa requerer sua feminilidade, lutar por ela, pois é ignorada, como se fosse apenas um corpo invisível. Nos documentos ainda constam o nome morto, sem o sobrenome paterno. Tyffany Janaínna, até onde já ouvi entre confusões do outro lado da rua, não arranja emprego de forma alguma. Tyffany Janaínna é mulher trans, negra e herdou o sotaque carregado da terrinha de sua mãe; Marituba, no Pará. Tyffany Janaínna tem sobre cada um dos seus ombros um fardo específico: de um lado suporta o irmão, crakudo, que diz que cuida dos carros e vende balinhas ali no semáforo da Rua Senador Fonseca ou na Rua Marechal. No outro ombro suporta Cicatriz.

Devo dizer, para jundiahyenses que não fazem ideia, que Cicatriz é o mais antigo Ocó das Monas de equê da afamada Rua Zacarias de Góes e arredores. Basicamente, um Ocó das equês é um cafetão de travestis. Cicatriz, ou apenas Cica, é um anjo-da-guarda que, segundo as trabalhadoras noturnas, cuida das suas Bonecas com carinho extremoso, mas não é à toa o fato de ostentar um talho que lhe atravessa a testa, feito a marca de Cain.

Quem da rua esgoelava-se à procura de Tyffany Janaínna, era o irmão crakudo, sempre aparecia para solicitar pequenos empréstimos e ir até a biqueira, atrás das suas pedrinhas filosofais.

Eu, de ressaca do ano novo, sem muitas lembranças do que havia ocorrido nas últimas muitas horas, ouvia as marteladas:

– ÔÔ Tyffanyyy! ÔÔ Julianno! ÔÔÔÔ Tyffany!!! ÔÔÔ JULIANNO!!!

Para quem fuma pedra até que o crakudinho estava bem de pulmões. Fui até a janela do quarto que dá de cara pra rua. Senti que eu iria começar o ano arranjando encrencas, eu me preparei para mandar o cara para aquele lugar e pedir, com um grito cortês, que ele não gritasse.

Não deu tempo.

Surgiu no parapeito da pensão uma coroa com a maquiagem esturricada do réveillon. Ela tinha porte, talvez em outras vidas ela tivesse sido uma daquelas lindas amigas do safado Henry Miller ou, quem sabe, uma coquete Em busca do seu tempo perdido, não sei, apenas acompanhei o diálogo, como um bom voyeur matinal.

– Calma, calma, rapaz, desse jeito a cidade inteira vai se irritar, são seis e meia da manhã, o que houve? – disse ela, sugando um fálico cigarro.

– Pô, cadê a Tyffany?

– Você está carente, é isso? – a coroa retrucou se impondo.

– Tá loca, tá?A Tyffany é minha irmão, pô!

 – Ah, entendi. Desculpe, desculpe pelo engano, vou bater na porta dela, um momento.

– Véia bruaca – o irmão crakudo sussurrou.

Eu ouvi, pensei: poxa, o álcool costuma embelezar as pessoas, já as pedrinhas parecem que turvam qualquer noção estética. Enfim, o cara estava na típica fissura.

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Aos meus olhos, a coroa estava um charme só, foi afável com o gritalhão. Logo ela ressurgiu.

– Querido, a porta está trancada, acho que ela deu uma saidinha ou está trabalhando.

– Que merda, Julianno desgraçada!

– Calma, calma, precisa de algo, bebê?

– Vintão, pô, vinte conto! – o irmão crakudo respondeu a esmo.

– Para quê?

– Almoçar

– Mas é hora do café.

– É, não sei, se dane, vai se danar – ele fez uns gestos e continuou – tô precisando de vintão.

– Eu entendi, mas calma, está aqui, pode ficar, bebê.

E da fresta da minha janela eu vi a coroa – uma bela Milf –, em pose elegante no parapeito da pensão, tirar uma nota de vinte de um dos bojos do sutiã e jogar, com certo zelo, para que o irmão crakudo fizesse seus corres paranoicos. Ele sumiu num instante, rápido feito o Papa Léguas, alisava a nota e ia falando com seu alter ego noiado. E foi essa a primeira imagem, o primeiro diálogo, que abriu para mim este ano de 2021. Mas a cena toda não ficaria só por isso.

(…)

HILDON VITAL DE MELO

‘Jundialmente’ conhecido. Escritor e pesquisador à deriva, mas professor de filosofia, por motivos de sobrevivência.
E-mail: vitaldemelo@yahoo.com.br – Instagram: @camaleao_albino

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