Nas teias da ROMANTIZAÇÃO

romantização

Cresci assistindo não só desenhos, igual a maioria das crianças. Assistia filmes e novelas nos anos 70 e 80. Lia livros, de todos os gêneros. Mergulhei nos mares de romances e romances… históricos, realistas, utópicos… e transformando pouco a pouco as redações em sala de aula em histórias, desafiando o tempo para concluir duas, três páginas ou mais, fui me identificando com os realistas. Ou, muito tempo depois, ao escrever meu primeiro livro, romance policial. Aquele que já despertava mais o interesse dos jovens dos anos 90, que deixavam as histórias “melosas” dos romances românticos, de amor e príncipes encantados, para mergulhar naqueles do tipo documentário, a realidade nua e crua, cantada principalmente pelos rappers, que marcaram forte presença naquela década. Assim, quando me perguntavam que tipo de livro eu escrevia, sempre citava romance policial. Se falasse somente romance, ficava no ar aquela dúvida e notava indiferença em muitos jovens. Mas a palavra romance hoje navega por outros mares. Com o nome romantização. Afinal, o que é isto?

A expressão campeã em comentários é a “romantização da pobreza”. Os veteranos vão se lembrar décadas atrás, da famosa canção Chão de Estrelas, de Sílvio Caldas. Canção clássica que transformava o barracão no morro do Salgueiro num palco iluminado. Aquela velha romantização ganhou outro véu. E não me refiro à romantização apregoada como “lição de moral”, do tipo “vive com pouco mas é feliz” ou “pobre mas honesto”. A romantização após a chegada dos equipamentos públicos às periferias, o douramento da pílula feito por vários governos nos últimos 30 anos, incorporou outra face, pois o tipo de política com determinado tipo de apoio cultural de mãos dadas foi o que estimulou o “orgulho de ser periferia”, daí temos o exemplo daquele ritmo “musical” ostentação, que tomou o lugar, inclusive, do antigo rap, que dificilmente continha elementos da velha romantização. As bases deste algo novo vieram sutilmente junto ao poder de comunicação nas mãos de todos, o celular com internet, onde a meritocracia conquistou corações um pouco à direita e um pouco à esquerda. Resultado disto, farto assunto para a mídia. Novos rostos e cenários que enigmaticamente conseguiam demonstrar ao mesmo tempo orgulho e humildade, algo raramente visto nos tempos de “cultura elitizada”. Mas como essas bases não trazem elementos reais de construção, a humildade passou a ser mera palavra ao vento. E mais uma vez, assistimos a realidade dando tapa na cara dos dois lados, desmascarando os lados que historicamente se enfrentam por um lugar ao sol. O ser humano continua carregando os mesmos e eternos defeitos e vícios.

Todos os gêneros de romance trazem manifestações inúmeras da essência humana. São verdadeiras aulas de psicologia; claro, identificando o pilar construtivo quando as situações fluem espontaneamente e com a finalidade de instruir para a construção e elevação dos laços sociais, emocionais, culturais e espirituais. Por mais que existam os elementos fantasiosos, a ficção, os adornos, nada deve fugir da proposta construtiva. Toda liberdade de expressão vem mostrar ensinamento ou necessidade de aprendizagem… inclusive pedido de socorro; daí não ser concebível dizer que “toda expressão é uma forma de arte”, pois arte não pode ter função destrutiva. Os romances sempre trouxeram estas duas faces. E sob o novo véu da romantização somos desafiados a identificar esses lados, compreender a mensagem. A questão que então chegamos é: quem aqui está preparado para compreender essas mensagens? Inclusive as subliminares?

Vivemos num campo de batalha, onde todos buscam culpados por situações diversas e alimenta-se um desejo interminável de “reparação de danos”. Nessa batalha, se faz vistas grossas às feridas internas de cada lado e a romantização – esta outra, tão falada – entra como isca para maquiar situações ou empreitadas. Um exemplo, como atuo na área ambiental, observo uma certa romantização na causa animal, tema que já dei uma pincelada em outros artigos. A romantização ambiental cria o efeito “conto de fadas” ou do realismo fantástico, atrapalhando o engajamento sério pela causa. Traz números, pessoas atraídas pelo “bacana, é onda, show…” muitas pessoas gritando nos canais virtuais e o mínimo a campo, agindo. Portanto, são itinerários diferentes o romance e a romantização que se alastra hoje pelos canais virtuais. O romance, por mais fantasioso que seja, tem um propósito dentro do mundo artístico. Já a romantização em cima de causas e determinados assuntos, não se enquadra como arte e muito menos como ativismo. É um simulacro de ativismo, que preenche com números porém possui um núcleo frágil, muitas vezes vazio.

Relembrando a composição Chão de Estrelas. Era arte, composição feita com qualidade. Uma romantização que tinha o propósito de mostrar ao mundo fora dos morros que lá, nos altos das serras cariocas havia corações como os nossos aqui. Gente sonhando com dias melhores, objetivos. Composições que criavam consciência porque penetravam pelos canais de nosso intelecto com conteúdo de qualidade. Humanismo sem vitimismo. Tanto que até os anos 90 houve a ascensão de muitos artistas em nossas periferias brasileiras. Talentos descobertos. Até que os caminhos começaram a se perder na gigantesca e complexa teia da romantização dentro do mundo artístico. Não vamos culpar a internet, colocá-la como bode expiatório, chutar o pau da barraca como expressava aquele polêmico outdoor paulistano com as palavras “TV, a imagem da besta”. Levando nesse raciocínio, a internet hoje estaria em que patamar de “periculosidade”? Não, esta é uma ferramenta que depende totalmente de cada um de nós, nossas intenções, objetivos. Ela poderia ser a oitava maravilha do mundo se assim a humanidade a usasse para tal. Para os objetivos unicamente de construção… dentro de todas as cores que o mundo tem. De toda a diversidade. Diversidade que respeita e não se impõe como dona da verdade. Pois quando falamos em construção, falamos de professores e alunos contínuos. Visão que muitos pseudoartistas que surgiram nos últimos 20 anos não têm. Expõem seus egos de tal forma que afasta a romantização dos artistas daquelas décadas. O véu exposto (sim, o véu, pois a essência poucos conseguem ver) inebria rapidamente. Seduz. Assim como seduz a romantização em cima dos animais, cujo nome em inglês se tornou sedutor, amolecedor de corações, “pet”. A diferença é que os pseudoartistas, ao mesmo tempo em que conquistam com suas histórias sofridas (no entanto se valeram da ferramenta meritocrática) e principalmente com o visual muito bem adornado, expõem também suas agressividades, muito similares ao estilo visto nos reality shows e nas novelas atuais. Nada a ver com aquilo que muitos classificavam de agressividade no antigo rap dos anos 90.

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Conclusão: foi o velho e bom romantismo, ou romantização dos antigos artistas, mais o advento do hip hop e o antigo rap dos anos 80 e 90, que projetaram os melhores artistas das periferias. O descaminho da romantização vindo depois, com o véu do orgulho, da ostentação, do vitimismo, da maquiagem da pobreza (material e cultural) e da violência, destruiu os sonhos e ideais da Geração X, principalmente esta, que pertenço e, dentro do mundo artístico literário, produzi e orientei muitos colegas, que hoje, ao falar que sentem saudade daquela época boa, são chamados de “velhos” pela geração da ostentação do ego. Mas nós estamos firmes na teia, enquanto eles estão balançando.(Ilustração: lofficielvietnam.com)

GEORGE ANDRÉ SAVY

Técnico em Administração e Meio Ambiente, escritor, articulista e palestrante. Desenvolve atividades literárias e exposições sobre transporte coletivo, área que pesquisa desde o final da década de 70.

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