A moda sempre foi uma linguagem. Desde os tempos mais remotos, o vestuário reflete não apenas o clima e a funcionalidade, mas também a identidade, a rebeldia e as emoções humanas. Entre os jovens, essa relação é ainda mais intensa, carregada de significados profundos. O preto, cor da noite, do mistério e da introspecção, tornou-se um símbolo marcante em determinados movimentos culturais, especialmente os que se afastam da normatividade imposta pela sociedade.
Punk, gótico e emo são alguns dos estilos que adotaram essa tonalidade como uma forma de contestação, mas também como uma expressão de sentimentos internos e, muitas vezes, um pedido silencioso por compreensão. O movimento punk, nascido na década de 1970, foi um grito contra o sistema, uma revolta vestida de couro e rebeldia. Suas roupas, predominantemente pretas, rasgadas e cheias de alfinetes, expressavam uma recusa às regras e uma postura de confronto.
O preto aqui significava não apenas a insatisfação, mas a necessidade de marcar presença em um mundo que, segundo seus adeptos, os ignorava. Os jovens punks não se calavam, não aceitavam ser invisíveis. Para eles, vestir-se de preto era um ato político e uma forma de resistência. Já o gótico, que emergiu como uma vertente pós-punk, trouxe um tom mais introspectivo e melancólico ao preto. Inspirado na literatura romântica e em elementos do macabro, esse movimento fazia do vestuário um espelho da alma.
Rendas, veludos, maquiagens pálidas e olhos sombreados reforçavam um ideal de beleza ligado à efemeridade da vida e à fascinação pela morte. Aqui, o preto não era apenas contestação, mas também uma expressão artística do que há de mais profundo na psique humana. Nos anos 2000, o emo surge como um movimento que mistura a agressividade do punk com a sensibilidade do gótico. Sua estética, marcada por franjas longas, olhos delineados e roupas escuras, refletia um estado emocional carregado de angústia e introspecção.
Diferente do punk, que gritava sua revolta, o emo muitas vezes se voltava para dentro, para seus próprios sentimentos. O preto, nesse caso, era mais do que uma escolha estética; era uma forma de comunicar dor, solidão e a necessidade de ser ouvido sem precisar verbalizar. No entanto, se a moda já serviu como forma de expressão de emoções profundas, hoje vivemos uma era em que o silêncio da juventude não é apenas estampado nas roupas, mas também nos olhos vidrados nas telas.
O uso excessivo da tecnologia, muitas vezes, se torna um refúgio para aqueles que sentem dificuldade em lidar com o mundo ao redor. Se antes vestir-se de preto era um pedido por atenção e compreensão, hoje o isolamento digital pode estar ocupando esse mesmo espaço.
A ansiedade e a depressão entre os jovens atingem índices alarmantes, e a tecnologia, ao mesmo tempo em que conecta, também pode ampliar o distanciamento. As redes sociais, que deveriam aproximar, frequentemente se tornam espaços de comparação e alienação, onde a dor real é mascarada por filtros e sorrisos forçados. Os adolescentes que, há décadas, usavam o vestuário como um grito de socorro, hoje podem estar escondidos por trás de avatares e mensagens sem resposta.
Talvez o preto ainda seja uma forma de comunicação. Talvez ele tenha apenas migrado para o brilho das telas, para os perfis que se escondem em sombras digitais, para os olhos que desviam do contato humano e mergulham em mundos virtuais. O que antes era uma revolta visível pode ter se tornado um pedido de ajuda silencioso, menos perceptível, mas igualmente urgente.
O uso da vestimenta como símbolo de resistência e identidade se perpetua ao longo das décadas, mas seu impacto parece se diluir na era digital. O vestuário, que antes comunicava uma mensagem instantânea a qualquer observador, hoje compete com a narrativa virtual construída em redes sociais. Se, por um lado, ainda há jovens que encontram no preto um refúgio para suas angústias, por outro, muitos escondem seus sentimentos atrás de perfis cuidadosamente elaborados.
A necessidade de pertencimento sempre foi um motor fundamental para a juventude. No passado, os grupos de jovens se formavam fisicamente, reunindo-se em praças, festivais ou shows para compartilhar ideias e ideais. Hoje, essa conexão muitas vezes se dá por meio de grupos virtuais, onde a expressão individual pode ser moldada por algoritmos e tendências passageiras. O preto, que já foi um emblema de resistência, agora divide espaço com códigos e hashtags que determinam quem é visto e quem permanece na invisibilidade digital.
Além disso, o comportamento juvenil tem se transformado em um ciclo de hiperexposição e recolhimento. Se antes a escuridão da vestimenta representava um grito de identidade, hoje o recolhimento nas telas pode significar tanto uma busca por validação quanto uma tentativa de evitar o julgamento social. A estética do “dark academia”, por exemplo, resgata elementos góticos e intelectuais, mas com uma roupagem digitalizada, onde o significado do preto pode ser tanto um tributo à nostalgia quanto um véu para angústias não ditas.
Os impactos psicológicos desse novo cenário são complexos. A solidão, que antes era combatida por meio de encontros físicos, agora se multiplica em interações fragmentadas e na dependência de curtidas e comentários para validar a própria existência. O que acontece quando a juventude já não encontra sentido nem na moda, nem na tecnologia? A alienação cresce, tornando-se um problema ainda mais difícil de identificar e combater.
O desafio contemporâneo não é apenas entender os jovens que vestem preto, mas também compreender o que se oculta em múltiplas camadas de realidade. Se antes a expressão era visível e tangível, hoje é preciso decifrar os códigos que estruturam as emoções digitais. Muitas vezes, o pedido de ajuda não está em uma roupa rasgada ou um olhar distante, mas em uma ausência silenciosa nas interações sociais.
A responsabilidade não recai apenas sobre os jovens, mas também sobre a sociedade como um todo. Como educadores, pais e amigos, é essencial criar espaços onde a juventude se sinta segura para se expressar sem precisar recorrer à alienação ou ao isolamento. O diálogo precisa ser resgatado, permitindo que o preto na vestimenta ou na tela não represente apenas um sintoma de dor, mas também um espaço legítimo para a construção da identidade.
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Compreender essa juventude escurecida não é rejeitar suas escolhas, mas sim ouvir o que elas tentam dizer. Seja através de roupas escuras ou da presença constante no digital, há uma necessidade latente de pertencimento e acolhimento. Em um mundo que insiste em padronizar emoções e comportamentos, reconhecer a individualidade da expressão juvenil – seja ela vestida de preto ou imersa na tecnologia – é um ato de empatia e respeito.
O preto pode ser uma escolha estética, mas também um espelho da alma. A juventude que um dia caminhava pelas ruas com coturnos pesados e jaquetas rasgadas pode, hoje, estar escondida atrás de uma tela, esperando que alguém enxergue sua dor. O desafio que nos resta é saber interpretar esses sinais, não apenas pela aparência, mas pelo que se esconde nas entrelinhas do comportamento e do silêncio. Talvez, então, possamos iluminar um pouco mais essa escuridão.(Foto: Andrea Piacquadio/Pexels)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO
É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona, ainda, na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.
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