Era o ano de 1980 quando ganhei de minha madrinha o jogo de raciocínio chamado Senha. O desafiado precisava acertar as quatro cores ocultas através da observação das pistas fornecidas a cada jogada, limitada a dez tentativas. Não era tão difícil como o jogo de Xadrez, bastante popular tanto entre os adultos como os jovens naquela época. Independentemente do grau de dificuldade dos tantos jogos de despertar a inteligência existentes naquelas décadas, havia entre os jogadores, aqueles que blefavam, roubavam, “sacaneavam” se o outro “marcasse bobeira”, fosse o desafiante ou o desafiado… instinto que persegue o ser humano desde sempre. E numa das jogadas com a Senha, como desafiador, lembro quando o desafiado quase acertou na primeira tentativa. Raro, mas podia acontecer. Quando coloquei as pistas correspondentes à jogada dele, notei que ele fez uma expressão estranha. E na segunda tentativa, ele trocou uma cor por outra similar. Mas ainda não havia acertado. Novamente fez uma expressão estranha e notei então, que ele estava sentado numa posição que permitia ver sobre a mesa de mármore onde jogávamos, o reflexo das cores escondidas atrás da trave do jogo. Discretamente ele dava uma escorregada sobre a cadeira, para analisar bem a cor que não estava acertando. Ao constatar a sacanagem, dei fim à partida da Senha. Mas qual a relação daquele período com o advento de “Matrix”, “reality shows”?
Ainda no decorrer daqueles anos 80, comecei a frequentar os chamados fliperamas na região central da cidade. Lá não só fiz amizades como encontrava os amigos parceiros dos jogos tradicionais, de cores, cartas, baralhos, peças e peças… era a transição do corpo a corpo para o individual, homem x máquina. Os agora chamados “games” seduziam massas de jovens e adolescentes… produzindo um efeito novo: o excesso. Ou como os próprios jovens falavam, “vício em videogame”. É certo que antes havia os jogadores compulsivos, principalmente de baralho. Mas eram nichos de jogadores, variando conforme a cultura local. O mundo virtual arrebanhou todos numa escalada impressionante, criando uma nova safra de intelectuais, jovens orgulhosos, inclusive pelo domínio de palavras em inglês. Enquanto um novo universo se abria, outro definhava. Além da Senha, eu possuía outros jogos, um deles era constituído por um mapa, chamado “Boa Viagem”, onde traçávamos roteiros para países e suas capitais. Também o “É Proibido Colar”, com perguntas sobre assuntos variados. Fui percebendo que o conhecimento proporcionado por estes jogos que estavam ficando para trás, sumia à proporção que os jogos virtuais ganhavam espaço. Sabia que vinha para ficar, a internet estava para chegar e o mundo se renderia a ela. Mas não me conformava como as massas se entregavam de uma forma tão alucinada ao virtual, passando a desprezar conhecimentos básicos, que estariam sempre nos auxiliando, inclusive profissionalmente. E eu me perguntava; por que não acrescentar em vez de substituir? Ambos conhecimentos não podem caminhar juntos?
O tempo passou e tudo se confirmou. Eu, já adulto, conversava com jovens que “davam aulas” de teorias conspiratórias, conflitos sociais e políticos entre países, falavam em marketing de rede, marketing digital, empreendedorismo… e mesmo com todas as ferramentas da internet em mãos, já desconheciam suas próprias cidades, muitos encontravam dificuldades em fazer redação (lembro que era o que mais temiam, e muitos ainda temem, nos concursos, provas…) e a língua portuguesa então… Fui constatando que o mundo virtual não despertou exatamente a inteligência, e sim concentrou a inteligência dos empenhados em determinados assuntos. Lá atrás, o mundo dos agora velhos jogos despertava a inteligência e a esperteza. Com o advento do virtual, o despertar é seletivo. Rapidamente se desperta a observação àquilo que tem apelo atrativo, que é justamente o que o ser humano carrega desde sempre; a busca pelo prazer, pela adrenalina, a curiosidade pelo alheio, pelos comportamentos bizarros e, consequentemente, o sensacionalismo. Criou-se uma geração com um novo e avançado perfil de esperteza e inteligência parcial, voltada para assuntos, digamos, determinados pela discreta “dita dura” da mídia virtual. Curiosamente, essa nova geração rapidamente enxergou esse aspecto com o lançamento de “Matrix”. E o resultado dessa visualização? Não, não mudou nada no caminhar dos objetivos do mundo conectado virtualmente, nem nos bastidores nem aqui fora. Isso porque as massas já estavam seduzidas por um fermento chamado “reality show”. A tentação da exposição, do prazer em alimentar a curiosidade da vida alheia. O jogar verde para colher maduro; “eu me mostro, você me mostra”. E então surgiram os “entendidos de psicologia”. Peritos em analisar comportamento de pessoas enclausuradas, escolhidas a dedo com diferentes perfis, ali se conflitando, criando e armando situações predeterminadas. A multiplicação de “juízes de internet” tem muito a ver com este tipo de “estudo”, aliás, multiplicaram-se também cursinhos rápidos por aí, ainda se encontra propaganda deles por postes em pontos de ônibus e principalmente pela internet. Alguns usam o nome do curso em inglês, para dar uma adornada, afinal, em inglês atrai mais, não é?
Da Senha, quando observávamos cara a cara a pessoa que estava interagindo conosco… lembram quando citei a expressão do desafiado, que tentava ganhar o jogo na malandragem? Pois bem, da Senha ao Matrix, ao show da “vida real”, que pelos canais virtuais é toda ensaiada. Assim como nos palcos, adornados, onde os efeitos visuais proporcionados pela parafernália eletrônica disfarçam a pobreza de conteúdo, de bagagem de conhecimento, de profissionalismo. Godard, que deixou este mundo físico neste mês de setembro, mostrou que é possível criar com rapidez, sem exigência de dias e dias de treino. Criar no mundo como ele é, em estado bruto, também contém muito valor. Mas para isto é preciso olhar para aquele conteúdo que ficou lá atrás. Aquela inteligência constituída pelos degraus dos estudos feitos com concentração, e não de forma “biônica”. Godard não precisou apelar para polemizar segmentos sociais, como hoje presenciamos em doses cavalares pelos palcos com os “novos artistas”, que afirmam que “toda expressão é uma forma de arte”. O ícone da nouvelle vague utilizava pessoas e cenários em estado bruto, mas lapidava. E lapidar não significa mudar a essência, e sim extrair exatamente seus valores, aquilo que o cenário e a pessoa tem a ensinar para a construção. Não é o que se presencia nesta nova onda, pós Godard, onde lemos pelos canais virtuais pessoas, inclusive jovens, cheios de ego, falando em “desonestidades intelectuais” e crenças limitantes, mas não enxergam que o considerar “toda expressão uma forma de arte” abre espaço também para a destruição de determinados valores.
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Matrix não só abordou aspectos conspiratórios, da relação homem x mundo virtual, de uma “realidade paralela”, mas também deixa mostras explícitas do “homem deus”. Exatamente aquilo que as novas gerações vêm se transformando. Escritores corajosos, com respostas prontas, mas ruins de interpretação e de conexão das ideias, sem falar na ortografia. Nos vídeos, arrasam com palavras fortes, cenário bem adornado e visual cativante. Investem maciçamente na aparência, nas coreografias. Os adornos também vêm com aquelas expressões modinhas. Todo esse castelo encantado usado e abusado pelos canais virtuais, pelos vídeos, não se verifica quando estão frente a frente numa palestra, com público determinado, num ambiente formal, aí eles se perdem, se sentem desconfortáveis. E assim, constatamos que a Matrix, de certa forma, está presente, comendo pelas beiradas. E a Senha disto tudo? Muitos pensam que sabem. Mas nada sabem. Do alto de seus egos, seguem aquilo que pensam ser a realidade.(Ilustração: ludopedia.com.br)
GEORGE ANDRÉ SAVY
Técnico em Administração e Meio Ambiente, escritor, articulista e palestrante. Desenvolve atividades literárias e exposições sobre transporte coletivo, área que pesquisa desde o final da década de 70.
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