JE SUIS MOÇAMBIQUE. E você, também é ou não?

JE SUIS

Je suis Moçambique? Sim, eu sou. E quem mais é? Cadê os bonzinhos de plantão? Cadê a raça pura de evangelizadores que querem o bem de todos, que pregam a moral e os bons costumes? Onde andam aqueles que acreditam ajudar e a fazer de suas palavras de ordem uma visão de um mundo mais globalizado e mais tolerante? Onde andam os que sentem a dor do próximo?

Moçambique, Malawi e Zimbábue têm mais de 600 mil crianças a beira da morte, devido a devastação de um ciclone e ninguém se manifesta nem se condói. Que raios de humanismo estamos pregando? Seremos todos da facção “Je suis Charles Hebdo”, e continuaremos a distribuir votos de compaixão a uma população branca, culta e incluída socialmente?

Ou olharemos para os negros pobres africanos que estão se acabando, apodrecendo em poças de água? O ciclone Idai colocou todos no mesmo nível: ricos sofrendo as mesmas necessidades que os pobres. Beira, até então terra de negócios devido ao porto nas águas do Oceano Índico, está praticamente toda destruída, de joelhos depois da chuva muito forte e dos ventos que passaram dos 170 quilômetros por hora.

Quem tem dinheiro, pouco encontra para comprar já que o desabastecimento de gêneros cresce a cada hora. E quem já não tem algum trocado continua vivendo ainda mais excluído, mais alheio ao mínimo disponível. E pior: sem a ajuda dos que anteriormente se diziam condoídos com a dor do outro. O que acontece que faz com que tenhamos comportamento tão diverso, diante de uma situação trágica e traumática de proporções imensas?

Por que tamanha comoção com a França, com a Bélgica e com a Holanda, diante de problemas sociais e culturais vividos e nenhuma dor diante das centenas de mortos africanos? Talvez ser negro seja a questão. Ou ser região pobre e culturalmente menos interessante. Ou ser no continente africano. Mas o fato é que não vi nenhuma manifestação pública ou grupo se identificando como “Je suis Moçambique”.

Confesso que isso me assusta, porque pouco tempo atrás todo mundo estava de camiseta e cartaz “Je suis Charles Hebdo” em punho e lançava-se campanha de arrecadação ou de sensibilização. E agora? Os moçambicanos estão morrendo um pouco por dia, quem se abnega a gritar por eles?

De que hipocrisia somos moldados para permanecermos com tamanha insensibilidade?


Bernardinho, o grande técnico de voleibol das seleções brasileiras, que cobra fortuna para palestras de autoajuda, erra a mão e comete ato falho ao comentar jogada da atleta Tiffany, chamando-a de homem. Total desrespeito e fato incontestável para um homem culto de projeção mundial. Obviamente que depois que a mídia divulgou, Bernardinho vem a público e pede desculpas, dizendo haver se manifestado em momento de muita emoção e de pouca racionalização. Mas falou.

Em dias de total transparência e de adesão aos movimentos de diversidade e aceitação ao diferente, nosso técnico de projeção mundial pisou feio na bola, apesar de agora vir a se desculpar; o que resta é que seu impulso foi ofensivo, desprezível e abjeto. Errou e errou feio. Com desculpas ou sem desculpas.

Aliás, esta é uma das situações que o melhor a se fazer é calar-se.

Em tempos de fugacidade e de mídia instantânea, falou ou fez está gravado e, muitas outras relações semelhantes a este caso serão apontados, em sua vida profissional passada, porque os repórteres investigativos correm atrás destes deslizes.

Enquanto em momentos anteriores se indagava qual seu grau de impacto na formação de novas gerações de atletas, agora se indaga qual seu grau de empatia com o diferente, se é que existe. Ficou feio, Bernardinho. Muito feio. Desta vez não foi um palavrão proferido diante de uma câmera de televisão; desta vez foi um juízo de valores, dos mais ofensivos e bárbaros, da contemporaneidade. Indesculpável.


Se já me causa surpresa, como comentei em crônicas anteriores, que meus alunos da UNESP digam que seu ídolo é Ayrton Senna, sem ao menos conhecê-lo, agora sou obrigado a ouvir que os jovens encontram ídolos entre executados no período da ditadura militar. Estranho, pois eu nem me lembro, ao certo ou claramente, deste período, apesar de já estar vivo em seu decorrer. Como alguém que não o viveu, muito pouco leu, não estudou o fato pode alçar ao posto de ídolo alguém executado naquela época.

É no mínimo inusitado que deixemos passar ao largo pessoas da contemporaneidade que merecem destaque e se abrace quem não temos referências alguma. Parece que buscamos no vazio existencial quem possa preencher nossas lacunas atuais, mas não tentamos dissolver o vazio nem tentamos compreender sua existência.

As dores psíquicas são encaradas como algo que não merecem destaques em nossas vidas, mas elas dão a cor, o som e o sabor daquilo que vivemos no aqui, agora. Olhemos para dentro de nós e percebamos o que somos e o que queremos ser; então estamos avançando em direção àquilo que pretendemos de nós e podemos abraçar causas que nos edifiquem, perceber com quem nos afeiçoamos para líder.

Escolher é líder é no mínimo apontar uma pessoa que gostaríamos de seguir. E como seguir a alguém massacrado e inexistente, na atualidade? Já temos o poder da transmutação?

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E daí, vemos pela televisão, a fila sem fim dos fãs que saem em busca dos ingressos de abusivo valor, para rever a insonsa dupla Sandy e Junior. Que percepção de mundo se está observando, ao analisar este quadro? Inexpressivos e sem ressonância social, reaproximam-se em um show cuja primeira versão já não tem mais ingresso.

Ouvi de alguns jovens do meu entorno que eles deixariam de pagar a mensalidade da faculdade, mas não perderiam o show. Isso que é uma questão de valores. Ou de falta deles. Mas vai brigar com quem?


E o Thiago Silva, aquele super-craque que deixou de jogar na Copa, para ficar chorando, pede crítica inteligente. E ele está coberto de razão. A crítica deve mesmo ser inteligente, focada, ampla, de conjunto, radical e direcionada àqueles que a merecem. Por isso que apontamos detalhes merecedores de atenção.

Senhor Thiago Silva, o senhor acha justo ganhar uma fortuna enquanto um assalariado ganha perto de R$ 1 mil? O senhor acha que estamos dispostos a ver os treinamentos nababescos das seleções brasileiras, as chegadas em helicópteros, enquanto a população comum se engalfinha em trens e metrôs, quando estes passam? O senhor acha que engolimos um empate com o Panamá, uma seleção inexpressiva e devemos valorizar como o jogo da década?

Ah, senhor Thiago Silva, crie vergonha nessa cara e ame mais o seu país. Seja mais profissional e menos mercenário, ajudando a população a entender o que significa mais valia e capitalismo selvagem. Senhor Thiago Silva, me desculpe, mas mídia com crítica inteligente significa o quê? Elogiar os boleiros semialfabetizados em detrimento de hospitais, escolas e segurança mais eficiente?

Vou lhe dar o livro Alice no País das Maravilhas e espero que o senhor tenha alcance para lê-lo e compreendê-lo. Seus compatriotas serão críticos inteligentes sim….venha viver nessa merda que estamos vivendo e pense mais no próximo porque olhar para o próprio umbigo é fácil, doce e agradável.


Afonso Antonio Machado é docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journalof Sport Psychology. Aluno da FATI.


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