Desde o dia 14 de março, o Brasil discute o brutal assassinato de Marielle Franco, mulher, negra, lésbica e da favela (como ela mesma gostava de dizer), eleita vereadora do Rio de Janeiro com mais de 46 mil votos, tornando-se a quinta figura política do legislativo municipal mais votada daquela cidade.
Marielle foi executada com quatro tiros na cabeça e o seu motorista Anderson Pedro Gomes com três tiros nas costas, todos saídos de uma pistola 9 mm, disparados de uma distância de dois metros entre o carro das vítimas e o carro dos assassinos.
As balas que os mataram eram de um lote de munição comprado pela Polícia Federal em 2006 e que teria sido furtado. Balas desse mesmo lote foram usadas na chacina ocorrida em Osasco e Barueri, em 2015. Três policiais militares e um guarda civil foram condenados pelas 17 mortes ocorridas nessa chacina.
Uma das principais linhas de investigação dos delegados que apuram os assassinatos de Marielle e Anderson é de que a execução pode ter sido encomendada por milícias.
Estes são os fatos conhecidos até o momento, mas especulações não faltam sobre os assassinatos, algumas tão absurdas, (como aquela que diz que Marielle era casada com um chefe do tráfico), que mereceriam a punição dos seus autores, tamanhas a má-fé e desonestidade intelectual, impressas nelas.
Mas, independentemente de quem tenha cometido essa barbárie, que a Justiça se faça e que os assassinos enfrentem as consequências legais.
Feitas essas breves explicações dos fatos, é preciso esclarecer que o artigo não visa apenas falar desse brutal assassinato, até porque muitos textos, de forma contundente, já esmiuçaram essa questão, mostrando o quão absurdo e grave ele é, e também quais as consequências para o Estado Democrático de Direito. A ONU já se pronunciou e exige explicações rápidas do Brasil, sob pena deste sofrer graves sanções internacionais.
Este artigo foi feito também para falar do rico e inspirador legado de vida que, a despeito de todos os obstáculos enfrentados por ser mulher, negra, lésbica e da favela, Marielle deixou para todos nós. A história dessa combatente e empática guerreira me comoveu, me inspirou e renovou as minhas esperanças em uma sociedade mais justa para todas as pessoas.
Marielle Franco nasceu no Complexo da Maré, zona norte do Rio de Janeiro, em 27 de julho de 1979. Foi a sua condição de pertencente a uma comunidade periférica que determinou as suas escolhas e o seu cotidiano. Marielle iria reivindicar com coragem as suas identidades como traços fundamentais da sua existência: ser mulher, mãe solteira, negra, lésbica e da periferia, num País machista, racista e higienista.
Após cursar o Ensino Médio e o Pré-Vestibular Comunitário da Maré, conseguiu bolsa integral e se graduou em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC).
Quando se formou socióloga Marielle, que já tinha trabalhado como educadora infantil em uma creche na Maré, se tornou professora e uma pesquisadora respeitada. Fez Mestrado em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense com uma dissertação sobre Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).
Toda sua vida social e posteriormente política, foi dedicada à militância na defesa dos direitos humanos e contra ações violentas nas favelas. Essa militância foi impulsionada depois da morte de uma amiga, vítima de bala perdida, durante um tiroteio envolvendo policiais e traficantes.
Em 2006, Marielle Franco entrou para a equipe de campanha de Marcelo Freixo que disputava eleições para deputado estadual. Com a vitória de Freixo, ela foi nomeada assessora parlamentar do deputado, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Mais tarde, assumiria a coordenação da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania dessa mesma Casa de Leis.
Na Assembleia Legislativa do Rio, foi incansável na defesa dos direitos humanos e sem fazer distinção. Todos que a procuravam buscando justiça eram atendidos por ela, conforme se constatam os relatos que surgiram nas mídias e redes sociais, desde a sua morte.
Um dos exemplos marcantes é a historia de uma a mãe que procurou Marielle para que esta a ajudasse a apurar a morte do filho daquela, que era policial militar. Inicialmente, a motivação da morte apontava para assalto. Marielle entrou no caso e cobrou, através da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio, empenho nas investigações que acabaram por descartar a motivação “assalto” e um colega de trabalho do policial morto se tornou o principal suspeito e irá a julgamento.
Em 2016, na sua primeira disputa eleitoral para vereança, Marielle foi eleita com 46.502, pelo PSOL. Sua trajetória social e política também lhe valeu a declaração pública de voto de 257 acadêmicos e professores.
A vereadora também era respeitada por referências dentro da Policia Militar, como o coronel Robson Rodrigues que escreveu um emocionante texto numa rede social. Segue um trecho: “amiga admirável e corajosa que lutava contra as minorias, mas principalmente contra a estupidez das mortes desnecessárias que têm endereços e destinatários certos. Marielle, assim como nós, não confiava na polícia violadora de direitos, mas confiava na instituição policial, naqueles que não querem que a Polícia seja instrumentalizada para fins vis e elitistas. Depois disso, ela me procuraria para ajudar policiais que sofriam abusos, assédio moral e outros tipos de violações de direitos. Eu te pergunto: alguém que só ‘quer defender bandido’, teria esse comportamento?”
Dos 16 projetos de lei que ela apresentou, oito eram de sua autoria e a outra metade em parceria com colegas da Câmara.
Um dos projetos de sua autoria propunha a incluir no calendário do Rio o “Dia da Mulher Negra”. Outro projeto propunha instituir o “Dia da Luta contra a Homofobia, Lesbofobia, Bifobia e Transfobia” e o “Dia da Visibilidade Lésbica”.
Outra proposta da Marielle previa incluir cartazes em lugares visíveis nos serviços públicos de atendimento às mulheres, informando dos direitos das vítimas de violência sexual.
Em parceria com outros vereadores propôs, entre outros projetos, um que garantiria assistência técnica gratuita para projeto e construção de habitação para famílias de baixa renda.
Ela se colocou contra o aumento do IPTU no Rio e contra o projeto de lei que armaria a Guarda Municipal. Este último projeto foi barrado pela Câmara, fato comemorado por Marielle com as seguintes palavras postadas em suas redes sociais: “Bala de borracha, bombas de gás e efeito moral, armas de choque podem sim ser letais!”
Dois dos projetos que assinou com colegas de plenário foram aprovados e se transformaram em leis: um que versa sobre a regulação de mototáxis, importante meio de transporte nas comunidades do Rio e outro projeto sobre contratos da Prefeitura com organizações sociais de saúde, alvos frequentes de investigações sobre corrupção.
Era crítica ferrenha da intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro. Há duas semanas, ela assumiu a função de relatora da Comissão da Câmara de Vereadores do Rio, criada para acompanhar a atuação das tropas na intervenção.
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Enfim, Marielle Franco fez o que muitos outros políticos sempre prometem em suas campanhas, mas não cumprem: aproximar a sociedade, principalmente as favelas, da câmara legislativa. Construiu um mandato voltado para o bem-estar das pessoas e foi incansável fiscalizadora dos poderes públicos, justamente para que estes respeitassem a população.
Este mandato de vereadora rompeu com um roteiro preestabelecido na sociedade brasileira que tenta impor que pessoas nascidas em situações de vulnerabilidade não podem ter voz nos espaços de decisão e nem, tampouco, mudar o contexto político e social deste País.
Marielle Franco, sua coragem e seu amor pelas pessoas provaram que é possível, sim, minar as estruturas podres da instituição política com o propósito de reconstruir novos alicerces fincados na competência, seriedade e real compromisso com o povo.
Hoje, os defensores dos direitos humanos pranteiam a morte de uma guerreira que fará muita falta. O luto é necessário, as manifestações de revolta nas ruas do Brasil e do mundo são necessárias. Essa comoção, legítima e sincera, em torno da covarde brutalidade perpetrada contra Marielle e Anderson, só mostra que a humanidade ainda tem jeito e que existem milhões de pessoas que acreditam no mesmo mundo justo e igualitário que a vereadora acreditou e defendeu.
E é graças a esperança nesta crença, que transformaremos nosso luto em luta, inserindo nos espaços de poder incontáveis Marielles, até que este sistema pautado no capitalismo selvagem, no patriarcado, no machismo e na corrupção desapareça, dando lugar a outro fincado nos princípios da igualdade, liberdade e dignidade humana.
MARIELLE FRANCO, PRESENTE! PRA SEMPRE!
É advogada, militante feminista e LGBT de Jundiaí