INVISIBILIDADE do século 21

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Vivemos tempos de muita exposição e, paradoxalmente, de muita invisibilidade. Tudo parece estar ao alcance de um clique, mas quase ninguém parece verdadeiramente ser visto. As redes sociais exibem sorrisos, viagens, conquistas. Mas por trás da tela, há silêncios que gritam, dores que não aparecem na selfie, solidões que cabem dentro de uma casa cheia. Estamos na era da visibilidade digital. Porém, somos invisíveis emocionalmente.

Nunca se falou tanto — mas nunca se escutou tão pouco. Os rostos passam apressados pelas ruas, nas salas de aula, nos corredores das empresas, nos jantares em família. Há corpos presentes, mas almas ausentes. E o mais triste: muitos já se acostumaram a não serem notados. Tornaram-se figurantes da própria existência, habituados à sensação de não fazer diferença. Como se suas palavras, gestos ou ausências não alterassem absolutamente nada no mundo ao redor.

Em meio à velocidade da vida moderna, ser invisível tornou-se uma experiência cotidiana para muitas pessoas. A sociedade, dominada pela lógica da produtividade e da aparência, acostumou-se a ver apenas quem se destaca, quem performa, quem se encaixa nos moldes do sucesso visível. Os silêncios, os olhares baixos, os gestos contidos — tudo isso passa despercebido. Assim, cresce uma legião de indivíduos que, mesmo presentes, não são notados: são os esquecidos nas filas, os ignorados nas conversas, os solitários em casas cheias.

Essa invisibilidade se instala, muitas vezes, dentro das instituições mais fundamentais: a família e a escola. No lar, pais e filhos convivem sem se perceberem, absorvidos por rotinas exaustivas ou distraídos por telas. Já nas escolas, alunos que não se destacam academicamente ou socialmente tornam-se sombras nos corredores, tratados apenas como números ou “casos”. A ausência de escuta ativa e de vínculos afetivos genuínos faz com que muitos cresçam acreditando que sua existência pouco importa. E o dano emocional disso pode durar uma vida inteira.

A cultura, por sua vez, tem papel ambíguo nesse processo. Se por um lado ela oferece espaços para que vozes invisibilizadas ganhem expressão — por meio da arte, da literatura, da música —, por outro, muitas vezes reproduz os mesmos filtros da sociedade, priorizando o espetáculo e o consumo em detrimento da escuta sensível. Lutar contra a invisibilidade, portanto, exige um esforço coletivo: é preciso cultivar a atenção, o afeto e a presença. Ver o outro verdadeiramente é um ato de resistência — e talvez o mais urgente dos nossos tempos.

Na família, essa invisibilidade ganha contornos delicados. O pai que chega em casa e mergulha no celular. A mãe que equilibra três turnos de trabalho e não tem tempo nem para si. Os filhos que vivem no quarto, cercados de telas, mas famintos de afeto. Há uma convivência que, muitas vezes, é apenas coexistência. Todos estão ali, mas ninguém se vê de verdade. E quem ousa pedir atenção é chamado de “carente”, “dramático” ou simplesmente ignorado. Tornar-se invisível dentro de casa é uma das formas mais dolorosas de desaparecer.

O problema não está apenas na ausência de presença física, mas na falta de presença afetiva. Aquela pausa para perguntar “como você está?” sem esperar que a resposta seja apenas “tudo bem”. Aquela escuta que não julga, que não tenta corrigir, que apenas acolhe. Na correria moderna, esse tipo de atenção virou luxo. E quem sente falta disso muitas vezes se cala, com medo de parecer frágil num mundo que exalta a fortaleza emocional.

Nas escolas, o cenário não é muito diferente. Os alunos que não se destacam são rapidamente rotulados como “medianos” ou “problemáticos” — e seguem pelos anos escolares sem que ninguém de fato os veja. O menino que desenha no canto do caderno porque não sabe expressar sua dor. A menina que silencia porque aprendeu que sua voz não importa. Aquele que sofre bullying e prefere desaparecer a pedir ajuda.

E também o professor, que tenta manter a sala funcionando, mas mal consegue ser notado em sua humanidade. A escola, que deveria ser espaço de formação integral, muitas vezes se perde entre provas, metas e currículos, esquecendo-se de que cada rosto ali carrega uma história que merece ser vista.

E a cultura? Ah, a cultura… essa deveria ser o espelho da alma coletiva. Mas até ela, muitas vezes, se curva ao ritmo das tendências e algoritmos. A arte que emociona cede espaço à arte que engaja. O filme que provoca reflexão dá lugar ao que rende mais cliques. A poesia que toca o invisível do ser se perde entre dancinhas e modismos. Não que isso não tenha seu valor, mas quando a cultura vira apenas entretenimento raso, ela deixa de cumprir seu papel transformador.

Ainda assim, é justamente na cultura onde resistem os sinais de vida. É no livro esquecido numa prateleira empoeirada, naquele verso que alguém posta sem saber que está salvando o dia de outro, naquela música que descreve exatamente aquilo que você não sabia como dizer. A arte vê o invisível. A arte escuta o que ninguém mais escuta. A cultura, quando não domesticada, é capaz de dar nome à dor, cor ao silêncio, forma à ausência.

Mas o que fazer, então, diante de tanta invisibilidade? Talvez o primeiro passo seja reaprender a olhar. Um olhar que vá além da superfície. Um olhar que diga: “Eu te vejo. Você importa.” Esse olhar não exige tempo, exige presença. Pode vir de um pai ao fechar o laptop e escutar o filho falar de um medo bobo. Pode vir de um professor que percebe que aquele aluno calado está pedindo socorro em silêncio. Pode vir de uma amiga que, mesmo de longe, envia uma mensagem simples: “Você está bem?”

Há, sim, formas de resistir à invisibilidade. E elas não dependem de grandes gestos, mas de pequenos milagres cotidianos: escutar sem interrupção, olhar nos olhos, perguntar com interesse real, elogiar com sinceridade. A família pode ser novamente esse primeiro lugar de visibilidade, onde se aprende a importância de existir para o outro.

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A modernidade nos ensinou a correr, mas esquecemos como parar. Nos ensinou a mostrar, mas não a sentir. Nos ensinou a projetar imagens, mas não a sustentar vínculos. Está na hora de aprendermos, ou reaprendermos, o que é ver de verdade. E, sobretudo, permitir que o outro exista em nossa presença. Porque, no fundo, não há dor maior do que viver entre muitos e ainda assim sentir-se invisível.(Foto: Roman Odintsov/Pexels)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona, ainda, na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.

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