A mãe buscou proteção para a filha com o propósito de que não passasse pelas mesmas dores físicas e afetivas dela. Nasceu na periferia da cidade grande e, no fim da adolescência, entusiasmou-se com outras conhecidas em buscar os atrativos além das margens. Seus olhos de safira azul reluziam como novidade dentre os moços dos bares. Foi assim, na esperança do amor além de suas fronteiras, que se enroscou com um e outro. Compuseram, dessa forma, as amarras de suas desilusões. Viveu anos de utopia, mesmo depois que a filha nasceu e ficou com os avós, para perceber que se transformara apenas em momentos instáveis.
Ao voltar para casa, acompanhou no mesmo ano, primeiro o enterro do pai e depois o da mãe, já bem idosos. Naquela época, embora não tivesse mais a sedução de outrora, saía na rua ao encontro de balcões com aguardente.
Temerosa que os homens fizessem com a filha, de olhos iguais ao dela, o que causaram nela, vestiu-a de menino. Passaria despercebida pelos becos do mundo.
A menina crescia. E, agora, na ausência dos pais? Sem casa, sem vencimentos, sem trabalho, como seria? A melhor escolha: uma pensão. Pegaria faxinas esporádicas e reciclagem para se manterem. Nas sarjetas haveria sempre algo para se sustentarem. Ela também, de certa forma, na embriaguez de sua história, habitava as valas das ruas. A filha, no entanto, não seria de carnes reaproveitadas.
E assim aconteceu. Embora a filha não seja vista em meio a escombros – protegeu-se de salteadores de esperança e afetos -, e possui liberdade sem as asas dos sonhos. O marido a respeita em seus trajes, emoções e lembranças doloridas. Às vezes, comenta sobre o menino da vizinha da avó. No lugar em que residiam surgiram os primeiros pontos de comercialização de drogas e adolescentes sem rumo foram pouco a pouco se consumindo por elas. A vizinha vestia seu filho de bailarina, a fim de que ele tivesse vergonha de sair pelas ruas.
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A mãe faleceu serena e apaziguada de doença decorrente do alcoolismo e, momentos antes de partir, comentou que lhe deixava como herança o Evangelho. Jamais deixasse de ouvi-lo. Ela prossegue atenta com sua herança e, onde estiver, se coloca à disposição para ajudar as pessoas. Compreendeu em profundidade o que herdara da mãe.
Abriu mão da aspereza de seus caminhos, para alimentar o coração com mansidão e humildade. Acontecimentos difíceis, todavia resistentes à boca voraz do mal.(Foto: Freepik)

MARIA CRISTINA CASTILHO DE ANDRADE
Com formação em Letras, professora, escreve crônicas, há 40 anos, em diversos meios de comunicação de Jundiaí e, também, em Portugal. Atua junto a populações em situação de risco.
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