AS DAMAS E A MULHER

mulher

Quando era pequeno, jogava damas com meu pai no Gabinete de Leitura Ruy Barbosa, no centro. O pai devia ter trinta e poucos anos e eu mais ou menos 10. Costumávamos chegar de manhãzinha e parávamos o carro a um ou dois quarteirões dali. No caminho, entre o carro e o gabinete, cruzávamos uma praça na qual morava toda a gente do centro velho, entre bêbados, pedintes e outras figuras incomuns. E nela havia – ou minha memória construiu – um banheiro situado abaixo do andar térreo, que era acessado por um lance de escada. Um banheiro público subterrâneo. Um dia, depois de uma partida na qual meu pai me deixou ganhar, saímos do gabinete e ouvimos uma gritaria vinda do subsolo. Uma mulher gritava desesperadamente, de dentro do banheiro, e dois homens batiam nela sem parar. Meu pai, sem pensar nem pestanejar, ordenou-me que ficasse parado e desceu correndo as escadas, mandando aos homens que parassem de agredir a mulher. Ao que um deles disse: 

– É uma p…, é só uma p…”. 

E meu pai responderia:

– É uma mulher, e se você quiser bater nela vai ter que bater em mim primeiro. 

O homem, dito isso, acertou meu pai com um soco. Contudo, ele era bastante forte e acertou-lhe muitos mais, salvando a mulher de ser espancada até morrer. Os homens batiam a cabeça dela no vaso sanitário e ela provavelmente não aguentaria por muito tempo mais. 

Já a salvo, a mulher chorava não sei se pela dor ou pela humilhação. Estava machucada e sentida por ter sido chamada de prostituta. Embora fosse prostituta. E então perguntei:

– Pai, por que ela ficou triste de ser chamada de prostituta se ela é uma prostituta? E por que você se arriscou por ela?” 

– Porque ninguém, meu filho, ninguém – além dela – deve lembrá-la dessa condição, que a entristece. E eu briguei por ela porque todo ser humano merece ser respeitado. 

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PULGAS E PERCEVEJOS

Os direitos humanos não são feitos de teoria ou de teses. São forjados por pessoas que se arriscam para assegurar a dignidade de quem a sociedade excluiu. Gente que cuida do outro e que, depois de uma partida de damas, ensina que o amor se faz na prática, protegendo quem quer que seja, pela simples condição de humano.

A Constituição Federal de 1988 dispôs, no artigo 3º, inciso I, que constitui objetivo da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária. É o que devem buscar todos os cidadãos brasileiros, diuturnamente, lutando para que todos sejam tratados como humanos dignos de proteção. E todos são todos. O sacerdote e o bandido, o fulano de esquerda e o de direita, os pobres e os ricos, as damas e a mulher.(Foto: GettyImages)

FILIPE LEVADA

É juiz de Direito

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