A arte de PERDER

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Alguns momentos são mais pesados e difíceis, no decorrer do ano. Outros passam suavemente de maneira tal que nem se percebem os dias correndo (porque o tempo está correndo e não estamos dando conta de nossas funções nem de nossas emoções), mas o que trago hoje é que a arte de perder é um exercício diário e perene, pois não vivemos no maravilhoso mundo da Alice, nem somos uma Poliana: como seres sociais e afetivos, estamos numa constante montanha russa, nos esforçando na arte de perder…

No universo que vivo é comum ouvir pessoas expressando suas emoções e suas reações, mesmo que isto traga algumas polêmicas e desencontros. Parece que psicólogo não sente, não perde, não tem fortes deslocamentos emocionais, é um expectador do Mundo. Porém, o psicólogo também sente e sente muito, flutua e flutua muito nas ondas das emoções. Passa pelo treinamento constante da arte de perder, sim senhor.

Conforme já escrevi em outras crônicas, é bem estranho a “necessidade” de alguns colegas de profissão esconderem seu quadro emocional. Isso dá a impressão de que são imunes e insensíveis, assumindo um espaço não-humano e quase-máquina, já que estão livres do amar, do sofrer, do sentir e do perder. Entretanto, desconheço disciplina e área de estudo que trabalhe com tal conteúdo e, assim sendo, só me resta acreditar numa postura escolhida e treinada, de tamanha frieza e fortalecimento psíquico.

Não acredito nesta distância de qualidades tão humanas e tão presentes nos grupos sociais. Como pode ser necessário que o psicólogo não vá a festa de aniversário de seu cliente? Como pode um padre não ir a festa de casamento de um paroquiano? Como pode um cirurgião não frequentar o mesmo círculo social de seus pacientes? Até quanto este distanciamento é benéfico e até quanto é falso e arrogante?

Entretanto, o que temos para analisar é a perda. A perda de um ente querido, a reprovação de uma série escolar, um vestibular perdido, um namoro rompido, um pet que cumpriu seu papel naquela família, um emprego que se perde ou uma oportunidade que não conseguimos aproveitar, adequadamente. Tudo isto são perdas que trarão alterações em nossas vidas e causarão dores, das mais leves e passageiras até as mais profundas e intermináveis. E como doem!

Para romances que se findam dizemos que sempre trazem novos amores. Mas até que se aproxime o novo, sofremos pelo que se foi. Uma dor fria, muda, profunda que nos faz suspirar e pensar em desistir da caminhada. Nossa rede de apoio sempre nos sugere novos passeios, novas festas, novas turmas de companhias, novos lugares e novas emoções. Mas até que essa dor antiga não se dissipe, não damos conta do novo. Aparenta que nos culpamos do desfecho pouco agradável e não nos esforçamos tanto para mudar.

O emprego, o ano escolar e o vestibular sempre temos a compensação de um novo evento melhor e mais adequado a nossa vontade, que nos tire da tristeza que nos toma. Não estacionamos por longo tempo neste território que pode ser revisitado em outra dimensão, outra forma e outro aproveitamento, de modo a termos um grau de superação mais rápido e eficiente.

Quando perdemos um ente querido (entre estes estão nossos pets, que causam imensa dor e mobilizam muito de nossa força interior), somos testados em nossa resiliência de uma maneira tão feroz e brutal que nos rendemos e nos prostramos por um tempo maior e intenso que em todas as demais perdas sentidas: somos testados num nível de absoluta maldade, pois não conseguimos pensar sem ser na perda.

O grau de proximidade e afetividade entre nós e a perda, seja ela de parentes próximos, amigos, amantes, animais de estimação e outras personagens de nossas Vidas, é preditor do quanto de energia gastaremos para sair do luto que tamanha perda nos causou. Chega a ser algo descomunal e doentio, que a cada dia se torna maior e mais cruel: machucamo-nos revivendo a dor e os episódios de vida em comum. A literatura diz (e a Vida comprova!) que desenvolvemos um princípio de sadomasoquismo que permitimos se instalar em nossa saúde mental, mutilando-nos a cada dia.

É uma dor que se nos apresenta incapacitante e nos bloqueia de percebemos o ciclo da Vida e a necessidade do enfrentamento. Trata-se de uma dor silenciosa e fria, que vai mudando de feição a medida que o luto vai se estendendo, passando por várias etapas, variadas nuances, mas todas são brutalmente complexas e sempre apontam para a perda. Até que se tornam saudades e tentaremos viver com a dor da saudade, que se nos simboliza aquele sentimento de algo que já se foi ou que se perdeu, num tom menos agressivo e menos doentio.

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Entretanto, existe uma dor de uma perda que é estranha e nos desajeita por completo: a dor da traição de um amigo. Não sei explicar nem quero vivê-la, mas o amigo traidor é um ser inescrupuloso que agiu de forma imoral e suja já que zombou de nossa confiança e nossa lealdade, mentiu e tripudiou sobre nossos sentimentos e não merece nosso sofrimento. Preferiria dizer que não há dor maior, visto que dores são dores e é preciso aprender a perder e superar este quadro antes que ele se torne crônico.

Sei bem que o Tempo e a Vida são excelentes professores desta disciplina e, de uma maneira bem pedagógica eles nos ensinam a arte de perder e de superar a dor. Grandes professores, o Tempo e a Vida.(Foto: Pikist)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Leciona na Faculdade de Psicologia UNIANCHIETA. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.

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