SEMPRE tem algo mais. Sempre…

sempre

Ao passar o feriado da Semana da Pátria, pensei que houvesse me debruçado sobre todos os ângulos da Independência. Imaginei que houvesse esgotado os vértices e as possibilidades de me autoanalisar e de propor reflexões sobre a autonomia, mas percebo que mal arranhei os poucos centímetros de uma capa epitelial que reveste a couraça de cada um de nós. Sempre tem algo mais. Voltando ao texto passado, como bem articulei, volto a perguntar: somos livres?

Verifico que os preconceitos rondam-nos a cada momento e, sem prestarmos atenção, somos tomados por respostas automáticas, nos esquivando de uma série deles, deixando a resposta por vir. Na realidade, mantemos um ar de isenção quando estamos comprometidos internamente com nosso postulado mesquinho e arrogante, garantindo um ar de desconhecimento, porém mantendo a raiz preconceituosa que nos formata.

Assim se passa com relação à etnia, aos credos religiosos, aos gêneros e as classes sociais: nunca perdemos a raiz nem deixamos de ter nosso juízo de valores, ainda que não nos manifestemos nem expressemos nossos mais sinceros pensamentos. Camuflamos, apenas.

E dentro deste tipo de comportamento, vamos vivendo nossa vida, apontando nossos momentos de sabedoria e liberdade, mesmo que isso nos doa e leve-nos a repensar por inúmeras vezes, sem assumir a verdadeira opinião ou postura na sociedade, que de certo modo, também é participativa e mentirosa.

Percebi, outro dia, ao discutir sobre família e suas relações internas, que numa sala de aula de maioria adolescente, falar de valores familiares soa como uma música distante e incompreensível. Os valores não são os mesmos, as lideranças não são as mesmas, a forma de agir de cada membro da família é diferente daquele de 10 anos atrás. Então, o que mudou? Eu mudei? A família mudou? A sociedade mudou?

Pois é, ambos mudaram. Entretanto nem sempre ambos assumem que mudaram (ou não) porque isto implicaria em assumir outros papéis sociais, codificados e manifestos em nossas relações, imprimindo outro tipo de compromissos e de atitudes, nem sempre validados por todos. Hoje, quando falamos em família, temos um rol de elementos a considerar: qual sua composição, qual sua liderança, qual sua orientação de gênero, qual sua colaboração financeira, qual sua relação com o contexto familiar mais amplo.

Anteriormente, teríamos a família nucleada, com a figura do pai provedor e da mãe, do lar. Ainda existem famílias nesta constituição, diante de um imenso número de outras configurações, normatizadas pela sociedade e, sem juízo de valores, vivendo harmoniosamente bem, diante de suas circunstâncias.

Frente a este detalhe, a pergunta que não quer se calar é: tamanha autonomia transformou a sociedade em microcélulas que não se conversam ou tudo isto converge para um campo só, que é a formação do sujeito? Caso convirja, por que de meu espanto diante de uma família contemporânea, com dois pais e duas mães, na mais simples das hipóteses?

O mesmo se dá diante da liberação das drogas. Assusta-me ver o uso livre e social de drogas, antes reclusas a espaços mais secretos e suspeitos. Ainda que todos façam uso, ainda que tudo esteja liberado, o certo continua certo e o errado continua errado? Como dialogar nestas situações? Como manter uma relação quando um dos membros não percebe seus espaços e tenta socializar suas opiniões? Qual o padrão de liberdade ou autonomia que merece ser destacado e reforçado?

Ou não se discute a vontade alheia e aceita-se tudo para não criar clima de discórdia? Analisar autonomia tem estes reveses e leva-nos a rever nossas posições e olhares, nem sempre muito claros, nem sempre muito pontuais. Estudiosos dizem que vivemos num momento de flexibilização, nesta época da pós-modernidade; mas sempre nos sobra a questão de até quanto flexibilizar ou até quanto tentar que o outro se flexibilize diante de nossas tendências?

Este impasse reflete a questão da independência e da autonomia. Como conversar com um fanático religioso, quando ele não abre espaço para olhares distintos e diversos? Acaso haverá um único olhar para a divindade? Apenas um ritual? E, então, diante do pluralismo religioso, vemos as crises de fé ou as imposições de grupos ortodoxos que buscam enaltecer seus credos em detrimento aos credos alheios.

Óbvio está que a situação passa também pelas leituras socioculturais das diversões e das industrias de entretenimento. Já não mais falamos de idade nem de períodos, uma vez que nossos adolescentes estão ampliando seu leque etário e percebemos adolescentes de 32, 34 anos. Bem formados, bem empregados, morando na casa dos pais.

Este fenômeno mundial já nos aponta para a formação familiar, que diferente de épocas anteriores, tinha outras propostas de vivencia em família. A atual, radicalmente diferente, é uma opção em países mais civilizados que o nosso e, rapidamente assimilada por nós. Já não causa estranheza a segunda geração ser criada pelos avós, ainda que os pais já sejam independentes financeiramente.

Estranho? Não, diferente. Não está mantido o padrão que conhecíamos, exercido e vivido até início dos anos 2000. Em 20 anos a sociedade se metamorfoseou de tal maneira que temos a impressão de vivermos em outro planeta, com uma população nunca antes conhecida. É um processo de modificações – cada vez mais arrojadas e mais intensas -, ainda que não entendamos o destino final, que nem sempre é de interesse saber.

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Outra marca desta temporalidade é a fugacidade de transformação: tudo passa e tudo se transforma num repente. Sem muita reflexão e sem muito questionamento. Os desdobramentos? Vamos vivendo e resolvendo. Ou vamos apenas vivendo. Sem questionamentos. Essa leveza (salvo melhor juízo) é uma marca da pós-modernidade, anteriormente chamada de inconsequência e foi por muito tempo tido como uma marca de rebeldia e falta de empatia.

Paro por aqui? Sim, mas prometo que continuarei a partir deste ponto. Vamos pensar juntos.(Foto: cena do filme ‘Perdido em Marte’, de 2015)

AFONSO ANTÔNIO MACHADO 

É docente e coordenador do LEPESPE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da UNESP. Mestre e Doutor pela UNICAMP, livre docente em Psicologia do Esporte, pela UNESP, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology.

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