Uma família(MUITO) tradicional brasileira: A história do Mão-de-Quiabo

uma família

Uma família (muito) tradicional brasileira: Eu sei, eu sei, peguei pesado com meu amigo Braguinha ao expor a intimidade dele com O surgimento do Zé Brochinha, alguns dos meus amigos, principalmente os marombados metidos a machões, ficaram indignados – pensaram que o Braguinha podia ser um nome inventado para atingir alguns deles. E me prometeram até surra, vocês acreditam, ó, afáveis leitores e leitoras? Já as minhas amigas acharam que o texto pegou foi leve em relação a esse tipo de homem. Concordo.

Mas bem, deixemos as confusões de lado. Gostaria de lhes contar algo ameno, que aconteceu…

Anteontem eu estava indo ao banco pagar umas contas já vencidas (devo, não nego, pago quando puder, mas quase nunca posso) e no meio do caminho não havia uma pedra, mas acabei trombando um colega meu da época do ensino médio, o Astolfo Ugello Marzetto (o nome é caquético, mas o cara está apenas na meia-idade). Estava distribuindo, bem intencionado, alguns panfletos políticos e, num rosto amarelejo, estendeu-me alguns.

– Olá, olá, Vitarelli, quanto tempo! Como você está? Meu amigo e cidadão!

– Tirando as dívidas, vai tudo daquele jeito – respondi um pouco intrigado.

– Entendi. Que bom, que tudo está indo. Olha, vamos manter a cidade no rumo certo, não é mesmo?

– Sim, claro, sempre em frente… Até o abismo.

– Que é isso! Você não perde esse seu senso de humor. Pense positivo, olha, não é que eu queira influenciar seu voto, longe disso, mas dê uma olhada nesse material de campanha sem nenhum compromisso e…

Vi o santinho repleto de sorrisos postiços e propostas políticas maravilhosas, com slogans e palavras de efeito. Despedi-me do querido amigo e, no, exato momento em que dobrei a esquina, notei incontáveis cópias daqueles panfletos preenchendo o bueiro. Engraçado: a boca-de-lobo cheia de tubarões e hienas, coisas da fauna eleitoreira.
E então eu me lembrei do apelido do meu amigo: Mão-de-Quiabo.

Explico-me: O Astolfo havia reprovado uns três anos no ensino médio e já estava de saco cheio de ser o único maior de idade entre um bando de adolescentes, sendo assim, nos cumprimentava com desdém, parecia que as mãos não possuíam ossos. Além disso, suava muito e tinha uma personalidade firme, tal como suflê de chuchu.
E agora ele estava arriscando na propaganda política, que coisa. Olhei para o panfleto, vi o nome da nossa amável cidade, ô terrinha querida, e uma interessante frase:

SALVEMOS OS CIDADÃOS E AS CIDADÃS TRADICIONAIS BRASILEIROS

Comecei a recordar a família do Mão-de-Quiabo. O pai, a mãe, as duas irmãs (uma: lindíssima) e o irmão mais novo compunham o interessante retrato em minha memória sobre o clã Ugello Marzetto. Muito tradicional.

Enquanto eu pagava as contas de dois meses atrás revirei as lembranças.

O patriarca dos Marzetto tinha um escritório famoso de advocacia e depositava esperanças em que os dois rebentos do sexo masculino dessem continuidade ao legado. Lembro-me que a mãe dele aparecia vez ou outra na escola, só para saber se seu garotinho de mais de dezoito anos iria ou não pegar o diploma.

No ano em que nos formamos a irmã mais velha saiu em todos os jornais da cidade, em fotos lindas que fizeram a alegria da juventude espinhenta – e anterior à internet – da nossa escola, ela foi condecorada Miss, ou Rainha, de alguma coisa, eu não sei se era da Uva, do Figo, do Milho ou da Pamonha, coisas de cidade do interior. Já o Mão-de-Quiabo ficou em recuperação final apenas em História, Geografia, Português, Matemática, Física, Química e Educação Artística. Mas não em Inglês, pois ele se considerava um craque e, bom, sendo um fanático pelas músicas do Iron Maiden, nas provas tirava suas notas máximas: C+, ou B-. Mas o milagre da educação pública deu uma ajudinha aquele ano e o diploma saiu.

Até onde eu saiba, ele e o irmão viviam falando de videogames e adoravam jogos de armas e zumbis, coisas do tipo.
Já a outra irmã, que era esforçada, eu nunca vi ou sequer ouvi uma só palavra.

Fiz algumas andanças pelo centro da cidade, observei o fraco movimento do fim de tarde e acabei voltando pra casa, pelo mesmo caminho. De longe avistei o Astolfo, que continuava na função, interpelando uma ou outra pessoa naquela abordagem cordial que, a cada dois anos, ele devia julgar ser politizada.

Cruzei o semáforo, mas fui pela calçada a rive gauche, para dar apenas um aceno ao colega.

– Se cuide, Vitarelli, meu amigo e não esqueça: vamos manter a cidade no rumo certo, combinado?

– Opa, claro – respondi da outra margem.

– Isso mesmo!

– E a família, vai bem?

– Ótima, somos gente de bem, honrados e tradicionais! – ele disse.

– Entendi, no rumo certo.

Entrei em minha casinha, tirei as moedas que me restaram e desabei no sofá. O mês é longo demais pra tão pouco salário, sempre.

Não que eu seja fofoqueiro, longe disso, mas, só por curiosidade e também porque não entendi bem essa de “gente de bem, honrados e tradicionais” em meio à vertigem que é a vida de todas as gentes. Liguei para o Marquito Souza, um verdadeiro especialista sobre vidas alheias e contei que havia visto o nosso amigo de sala, o Astolfo Marzetto.

– Eu não acredito, é sério isso tudo Marquito?

– Sim, só digo verdades.

– Não pode ser – eu disse incrédulo.

– Pode confiar, é quente – disse o Marquito.

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Sob as palavras do Marquito Souza eu vi a honra e a tradição (e um pouco da glória) dos Ugello Marzetto virarem tema de novela mexicana: a irmã mais velha (lindíssima) vivia do sustento que recebia de alguns (muitos) namoradinhos paralelos, entre eles importantes figuras ligadas aos três poderes e/ou empresariado e/ou meios imobiliários e/ou gigolôs da região, diziam que pagava as caríssimas mensalidades de uma pós-graduação de grife, as plásticas, o carro sempre novo e as baladas vips com dinheiro que suava às sextas e sábados nuns lugares famosos e sigilosos.. O irmão mais novo era um desses tipos brucutus e cheios de marra, mas que, diziam, frequentava saunas muito tolerantes, além disso, posava numas fotos um tanto reveladoras com um dos primos de segunda geração. A mãe, fanática por limpeza e organização, mas que tem nome sujo há anos, abraçou uma dessas ondas místicas, depois foi fazer terapias, e enfim virou carola pulando de religião em religião, mas, mesmo correndo o risco de perder a pose, ainda dava uns golpes em lojas de móveis e eletrodomésticos, inclusive, adorava passar cheques borrachudos. E, para fechar a conta, o pai, grande exemplo de conduta e bons costumes, ficou desmoralizado depois que descobriram que administrava máquinas caça-níqueis dentro de um dos escritórios. Por fim, foi pego traficando vodca e uísque falsificados e outras muambas.

– Faltaram só uns dólares na calçola, ahahah! – gritava o Marquito.

– Mas, espere aí, e a outra irmã? Aquela que nós nunca vimos. – eu disse.

– A baranga? – o Marquito cortou.

– Não fale assim, o importante é beleza interior e a inteligência, aliás…

– Ah, cala a boca, Vitarelli, aquela lá era mais feia que eu e você juntos.

– Acho difícil superar nosso recorde. Tá, mas o que aconteceu com ela?

– Ficou bonita, acredite. Estudou, saiu daqui da cidade, tretou e rompeu com a chatice da família e assumiu que é lésbica, feminista, a favor do aborto e libertária. Vive bem e feliz. É especialista em cervejas e vinhos num baita comércio! – anunciou o Marquito.

– Caramba, a irmã renegada deve ser a melhor parte dos Ugello Marzetto – eu disse.

– É, é quente. E o Mão-de-Quiabo já me pediu dinheiro umas duzentas vezes, vive de pequenos golpes. – disse o Marquito.

– Poxa, vamos dar vivas!

–Henrique, você bebeu? Como assim?

– Viva à família tradicional brasileira!(Foto: ‘A Grande Família/Rede Globo/Divulgação)

HILDON VITAL DE MELO

‘Jundialmente’ conhecido. Escritor e pesquisador à deriva, mas professor de filosofia, por motivos de sobrevivência.
E-mail: vitaldemelo@yahoo.com.br – Instagram: @camaleao_albino

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