Fico feliz em perceber que o racismo só existe na Espanha. Muitas vezes cheguei a julgar que ele se espalhava por aqui também, porém me alegro em ver que não somos racistas nem deixamos que nenhum tipo de preconceito ronde nossos costumes, arranhando a moral e a vida dos brasileiros, tão empáticos que somos.
Mas o assunto do Vini Jr está tomando proporções interessantes, de modo a representar uma centena de países que se manifestam e se propõem a não se deixar levar pelo peso da nacionalidade nem do valor dos patrocinadores; estão mais preocupados, isto sim, com a dignidade de seus atletas e com a respeitabilidade.
Verdade que a Espanha tem abusado neste assunto: não se trata da primeira, nem da quinta, nem da décima vez que temos um abuso desta natureza, sempre sendo tratado como um mal menor. Sempre com a alegação de que foi um mal-entendido, que é coisa regional, que não se trata de algo nacional, enquanto a questão está enraizada e se tornando endêmica.
Espanta o fato de que as atitudes estão se tornando cada vez mais agressivas e mais abrangentes, não se tratando de nada pontual e nada muito fechado: movimentos sociais explícitos, gritarias, bonecos, cartazes, insultos, o que acaba contagiando a população, mesmo que distante, mas a modelagem social facilita o processo de divulgação, em especial das notícias ruins.
Assusta-me que autoridades da La Liga e outras de outros poderes espanhóis, de início, diziam que tudo estava dentro dos limites e que não passava de um grande problema controlável. O corpo de arbitragem se dividiu, a torcida se viu atônita, esperando decisões que foram frouxas e sem poder de punição, como acontece por aqui também.
Mas vamos ver de perto: houve o problema, um sério problema. Aliás, não se trata de problema, mas de crime. E crime tem que ser tratado como crime, com rigor e critério punitivo, para que seja feita a justiça necessária e não se permita a repetição do gesto criminoso. Para tanto, como a situação só tem se ampliado, é preciso de gestos pontuais, firmes e assertivos, demonstrando atuação e manutenção da ordem, evitando novas cenas como a última delas.
Não é momento de se discutir o que leva a tanto: é momento de retornar o trem aos trilhos e fazê-lo andar ordenadamente, sem estranhamentos nem incidências de vacilos ou erros (para não dizer crimes). Se o governo da Espanha demorou para acordar, é uma parte desta triste história que não nos cabe responder. Entretanto, sendo um país que vive do turismo e estas barbaridades interferem na melhora das relações, complicando o olhar dos turistas, com certeza o governo tomará cuidados com a divulgação de cenas como estas, que começam a ser divulgadas em outras situações não menos sérias e não menos importantes.
Vejo com sérios vieses a situação que está posta, uma vez que no Brasil temos um racismo enfronhado em nossa cultura, de uma maneira velada e de outra forma igualmente violenta. Não são poucos os ataques dos que se perdem em suas loucuras e ofendem, vociferam e agridem aos não-brancos. Vemos constantemente nos noticiários e redes sociais manifestações de luta contra ataques desta natureza, o que me faz estranhar que diante deste caso o país tenha se unido tão fortemente e tão sensivelmente.
Sim, estranhar, porque quando o atacado foi seu João, negro, trabalhador, morador da periferia de uma cidade qualquer, pouco se falou ou pouco se divulgou. Porém, desta vez, é um jogador de futebol, pessoa notória, pessoa pública. Mas, o Vini Jr tem mais valor que o senhor João, pobre da periferia? É mais digno? Merece mais respeito? Entendem o “x” da questão? Ou estamos diante de outro grupo de preconceito, igualmente discriminatório?
Mentira que não somos preconceituosos. Mentira que somos empáticos e elásticos em nossas análises. Somos cruéis e maldosos e nossa inteligência nos favorece a mascarar o tanto de rancor e preconceito que escamoteamos para nos favorecer. Ataques semelhantes ao do Vini Jr acontecem em nossos campos, quadras, pistas, piscinas e ruas e comércio, somente são destacados quando a vítima insiste em querer o reparo ou quando se trata de alguém mais notório.
Isso é nojento e mostra o quanto manipulamos uma realidade fria e tosca, onde o negro ainda tem a infelicidade de não ser reconhecido como um membro igual aos demais na sociedade brasileira que é injusta e não aceita que age com olhos de invisibilidade diante destes preconceitos e descasos. Um grande número de pessoas negras ou pardas ou mulatas ou não-brancas são invisíveis para uma maioria branca. Mesmo que insistamos em dizer que não.
Gostaria de me estender mais na discussão do caso do Vini Jr, mas tenho em mente tantos casos que presencio aqui, na minha cidade, na faculdade onde leciono, no shopping onde almoço, no templo que frequento, na roda de amigos que me acolhem, nos consultórios de saúde por onde passo que não sei por onde começar. Valorizo, sim e dignifico a ação deste jovem atleta que fez bem em criar o caso que criou e em expor sua situação para além das linhas do campo de futebol.
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Feliz dele que tem notoriedade e dinheiro para gritar e fazer reverberar sua indignação, sua força e seu poder. Ele é uma pessoa pública, o que faz com que os olhos do mundo se voltem para o problema. O racismo é endêmico e existe aqui. Mas pode ser combatido rigor.
Por Vini Jr ser brasileiro, seria bom que começássemos a arrumar a casa, antes de apontar o dedo para a Espanha. Com a casa em ordem, teremos mais credibilidade e mais força nesta luta, que amplia a dignidade e demonstra o quanto somos igualitários, sem falsa empatia. Isso se chama justiça, o que me parece um pouco dormente no território tupiniquim, mas não canso de esperar. Parabéns, Vini Jr…seu grito ecoou, no Brasil, não apenas porque você é brasileiro mas porque aqui ainda existem pessoas que acreditam na possibilidade de uma sociedade mais justa e mais humana. Estamos com você, modestamente, cheios de vícios sociais, de preconceitos, mas estamos.(Foto: Redes Sociais)
AFONSO ANTÔNIO MACHADO
É docente e coordenador do Lepespe, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia do Esporte, da Unesp. Mestre e Doutor pela Unicamp, livre docente em Psicologia do Esporte, pela Unesp, graduado em Psicologia, editor chefe do Brazilian Journal of Sport Psychology. Diretor técnico da Clínica de Psicologia da Faculdade de Psicologia Anhanguera, onde leciona na graduação.
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